Concepção dualista do homem
Anteriormente
explicamos como a relação entre Ideias e as coisas não é “dualista” no sentido
comumente entendido, dado que a Ideias são a “verdadeira causa” das coisas. Ao
contrário, é dualista (em certos diálogos, em sentido total e radical) a
concepção platônica das relações entre alma e corpo. Com efeito, além de
introduzir à componente metafísica, introduz-se a componente religiosa do
orfismo, que transforma a distinção entre alma (suprassensível) e corpo
(sensível) numa oposição. Por esse motivo, o corpo é entendido não tanto como o
receptáculo da alma, que a ela deve a vida e suas capacidades (e, portanto,
como instrumento a serviço da alma como o entendia Sócrates), quanto como
“túmulo” e “cárcere” da alma, ou seja, como lugar de expiação da alma. Lemos em
Górcias:
E eu não me
maravilharia se Eurípedes afirmasse a verdade lá onde diz: “Quem pode saber se o viver não é morrer e
morrer não é viver?” e que nós, na realidade, talvez sejamos mortos. Eu já
escutei dizer, de fato, também de homens sapientes, que nós, agora, estamos
mortos, e que o corpo é para nós um túmulo.
Até que tenhamos um
corpo, diz Platão, estamos “mortos”, porque somos fundamentalmente a nossa
alma, e a alma, enquanto está num corpo, encontra-se como num túmulo, e
portanto, mortificada; o nosso morrer (com o corpo) é viver, porque, morrendo o
corpo, a alma é libertada do cárcere. O corpo é raiz de todos os males, é fonte
de amores insanos, paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura: e é
justamente tudo isso que mortifica a alma. Essa concepção negativa do corpo se
atenua um pouco nas últimas obras de Platão, porém jamais desaparece
totalmente.
Dito isso, é todavia
necessário enfatizar que a ética platônica é só parcialmente condicionada por
esse exasperado dualismo; com efeito, seus teoremas e corolários de fundo se
apoiam na distinção metafísica de alma (ente afim ao inteligível) e corpo (ente
sensível), mais que na contraposição do orfismo de alma (dáimon) e corpo
(túmulo e cárcere). Desta última derivam a formulação extremista e a
exasperação paradoxal de alguns princípios que em todo caso permanecem válidos,
no contexto platônico, também no puro plano antológico. A “segunda navegação”
continua sendo, em substância, o verdadeiro fundamento da ética platônica.
Alguns,
que nos estão unidos pela graça de Cristo, admiram-se quando leem ou ouvem
dizer que Platão teve de Deus concepções que, reconhecem, estão em estreita
concordância com a verdade da nossa religião. Por isso alguns têm pensado que,
tendo ido Platão ao Egito, poderia ter ouvido Jeremias, ou lido os seus
escritos proféticos durante a viagem. Eu mesmo consignei esta opinião em alguns
livros. Mas um cálculo mais apurado das datas, tais como se contém na história
cronológica, mostra que Platão nasceu cerca de cem anos depois da época em que
Jeremias profetizou. Com efeito ele viveu oitenta anos; ora do ano da sua morte
até àquele em que Ptolomeu, rei do Egito, pediu à Judéia os livros dos profetas
hebreus para os mandar traduzir para seu uso por setenta hebreus que também
conheciam o grego, passaram-se cerca de sessenta. Portanto Platão não pôde, no
decurso da sua viagem, nem ver Jeremias, morto desde há muito tempo, nem ler as
Escrituras ainda não traduzidas para grego, língua em que era exímio. A menos,
talvez, que, apaixonado estudioso como era, tenha delas tido conhecimento por
intérpretes, como aconteceu com as egípcias – sem se tratar duma tradução
escrita (…) mas sem dúvida que conseguiu, com as suas conversações, tomar
conhecimento, na medida do possível, do seu conteúdo. (PEREIRA.J. Dias, 1996, p.731).
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