segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

FÉ, FILOSOFIA E VIDA NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO


O filosofar na fé

Agostino foi o primeiro pensador cristão a praticar madura síntese entre fé, filosofia e vida, considerando que a fé teria haurido clareza da razão, mas também a razão teria haurido estímulo e impulso da fé (credo ut intelligam, intelligo ut credam).
Plotino mudou o modo de pensar de Agostinho, oferecendo-lhe as novas categorias que romperam os esquemas do seu materialismo e da sua concepção maniqueísta da realidade substancial do mal, e todo o universo e o homem lhe apareceram em nova luz. Mas a conversão e a acolhida da fé em Cristo e na sua igreja mudaram também o modo de viver de Agostinho, abrindo-lhe novos horizontes do próprio pensar. A fé se tornou não só substância, mas o próprio horizonte da vida e do pensamento, e o pensamento, por sua vez estimulado e verificado pela fé, adquiriu nova estatura e nova essência. Nascia o filosofar-na-fé, nascia a “filosofia cristã”, amplamente preparada pelos Padres gregos, mas chegada à perfeita maturação somente em Agostinho.
A conversão, com a consequente conquista da fé, é, portanto, o eixo em torno do qual gravita todo o pensamento de Agostinho, e por isso o caminho privilegiado para compreendê-lo. Na sua obra Os grandes filósofos, Karl Jaspers enfatizou muito bem esse ponto. Ele escreve:

A conversão é o pressuposto do pensamento agostiniano. Somente na conversão se torna certa a fé que não precisa de nada, não pode ser comunicada mediante nenhuma doutrina, mas lhe é dada como presente de Deus. Quem não experimentou por si mesmo a conversão achará sempre algo estranho em todo o pensamento que se funda sobre ela. O que significa essa conversão? Ela não é o despertar uma vez provocado por Cícero, nem a transfiguração feliz do pensamento na espiritualidade atuada por Plotino, mas um acontecimento único, por sua essência diferente no seu sentido e na sua eficácia: consciente de ter sido tocado imediatamente pelo próprio Deus, o homem se muda até na corporeidade do seu existir e nos objetivos que se propõe [...]. Junto com o modo de pensar, mudou também o modo de viver [...]. Semelhante conversão não é filosófica mudança de rota que é preciso renovar dia por dia [...], mas um instante biograficamente estável que irrompe na vida, dando-lhe fundação nova [...]. “Neste movimento do filosofar, do autônomo ao crente-cristão, parece que se trata do mesmo filosofar. No entanto, tudo é permeado como por uma linfa diferente, estranha [...]. Agora as antigas ideias filosóficas de per si já impotentes se tornavam meio para pensar, num momento que jamais se acaba.

 
Por fim, Jaspers enfatiza:

Aquilo que mudou acima de qualquer coisa (após conversão) é a avaliação da filosofia. Para o jovem Agostinho, o pensamento racional conservava expressamente um valor preponderante. A dialética é a disciplina das disciplinas, ensina a aprender e a ensinar. Ela demonstra e salienta aquilo que é, aquilo que eu quero; ela sabe o saber. Ela somente quer e, mais ainda, pode tornar-nos sapientes. Agora é avaliada negativamente. A luz interior está mais acima [...]. Agostinho reconhece que sua anterior admiração pela filosofia (como dialética) era totalmente exagerada. A bem-aventurança não se encontra senão no anseio de Deus; mas essa bem-aventurança pertence somente à vida futura, e o único caminho para chegar a ela é Cristo. O valor da filosofia (como mera dialética) desse modo desaparece. O pensamento bíblico-teológico subsiste como a única coisa essencial.


Seria essa uma forma de fideísmo? Não. Agostinho está muito longe do irracionalismo. A fé não substitui a inteligência e não a elimina; pelo contrário, como já acenamos acima, a fé estimula e promove a inteligência. A fé é um cogitare cum assensione, um modo de pensar assentido; por isso, sem pensamento não haveria fé. E, analogamente, por seu lado, a inteligência não elimina a fé, mas a reforça e, de certo modo, a esclarece. Em suma: fé e razão são complementares. O credo quia absurdum é atitude espiritual totalmente estranha a Agostinho.
Nasce, desce modo, a posição que mais tarde será resumida nas fórmulas: credo ut intelligam (creio para compreender) e intelligo ut credam (compreendo para crer); fórmulas, por outro lado, que o próprio Agostinho antecipa na substância, e, em parte, também na forma. Sua origem se encontra em Isaías 7,9 (na versão grega dos Setenta), onde se lê: “Se não tiverdes fé, não podereis entender”, que em Agostinho, corresponde à exata afirmação: intellectus merces est fidei, a inteligência é “recompensa da fé”. Eis duas passagens a esse respeito muito significativas. Lemos na Verdadeira religião:

Com a harmonia da criação [...] concorda também a medicina da alma, fornecida a nós por inefável bondade da divina Providência. [...]. Essa medicina age em ordem a dois princípios: a autoridade e a razão. A autoridade exige a fé, e encaminha o homem à razão. A razão induz ao entendimento consciente. Por outro lado, sequer a autoridade pode dizer-se desabastecida de um fundamento racional, desde que se considere a quem se presta fé; e os motivos de obséquio à autoridade são mais que nunca evidentes quando ela sanciona uma verdade incontestável também para a razão.


E na Trindade (referindo-se à passagem de Isaías supracitada) se lê:


A fé procura, a inteligência encontra; por isso o Profeta diz: Se não credes, não compreendereis. E, por outro lado, a inteligência procura ainda Aquele que encontrou; porque vela sobre os filhos do homem, como se canta no Salmo inspirado, para ver se há quem possui inteligência, quem busca a Deus. Portanto, por esse motivo o homem deve ser inteligente, para buscar a Deus.


Essa é a posição que Agostinho assumira desde a sua primeira obra em Cassicíaco, Contra os Acadêmicos, que continua sendo a característica mais autêntica do filosofar:

Todos sabem que nós somos estimulados ao conhecimento pelo duplo peso da autoridade e da razão. Eu considero, portanto, como definitivamente certo não ter de afastar-me da autoridade de Cristo, pois não encontro outra mais válida. Além disso, a respeito daquilo que se deve alcançar com o pensamento filosófico, confio que encontrarei, entrementes, nos platônicos, temas que não causam repugnância à palavra sagrada. Essa é, com efeito, a minha atual disposição de desejar apreender sem demora as razões do verdadeiro não só com a fé, mas também com a inteligência.

E muitos outros textos de gênero semelhante poderiam ser aduzidos.
Note-se que Platão já compreendera que a plenitude da inteligência podia realizar-se, naquilo que concerne às verdades peremptórias, só mediante divina revelação, e escrevera:

Tratando-se dessas verdades, não é possível senão fazer uma destas coisas: ou apreender de outras qual é a verdade, ou descobri-la por si mesmo, ou, se isto é impossível, aceitar, entre os raciocínios humanos , o melhor e mais fácil de se confutar, e sobre ele, como uma barcaça, enfrentar o risco da travessia do mar da vida, a não ser que se possa fazer a viagem de forma mais segura e com risco menor numa navio mais sólido, isto é, fiando-se numa revelação divina.


Esse navio, para Agostinho, já existe: é o lignum crucis, é o Cristo crucificado, e é nesse sentido que podemos falar de terceira navegação. Cristo, diz Agostinho, “pretendeu que passássemos através dele”, e também: “Ninguém pode atravessar o mar do século se não é carregado pela cruz de Cristo”. Este é precisamente o “filosofar na fé, ou seja, a “filosofia cristã”: mensagem que mudou por mais de um milênio o pensamento ocidental. (ANTISERI Dario e REALE Giovanni, 2017, p.450-452).

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