O filosofar na fé
Agostino foi o primeiro
pensador cristão a praticar madura síntese entre fé, filosofia e vida,
considerando que a fé teria haurido clareza da razão, mas também a razão teria
haurido estímulo e impulso da fé (credo ut intelligam, intelligo ut credam).
Plotino mudou o modo de
pensar de Agostinho, oferecendo-lhe as novas categorias que romperam os
esquemas do seu materialismo e da sua concepção maniqueísta da realidade
substancial do mal, e todo o universo e o homem lhe apareceram em nova luz. Mas
a conversão e a acolhida da fé em Cristo e na sua igreja mudaram também o modo
de viver de Agostinho, abrindo-lhe novos horizontes do próprio pensar. A fé se
tornou não só substância, mas o próprio horizonte da vida e do pensamento, e o
pensamento, por sua vez estimulado e verificado pela fé, adquiriu nova estatura
e nova essência. Nascia o filosofar-na-fé, nascia a “filosofia cristã”,
amplamente preparada pelos Padres gregos, mas chegada à perfeita maturação
somente em Agostinho.
A conversão, com a
consequente conquista da fé, é, portanto, o eixo em torno do qual gravita todo
o pensamento de Agostinho, e por isso o caminho privilegiado para
compreendê-lo. Na sua obra Os grandes
filósofos, Karl Jaspers enfatizou muito bem esse ponto. Ele escreve:
A conversão é o
pressuposto do pensamento agostiniano. Somente na conversão se torna certa a fé
que não precisa de nada, não pode ser comunicada mediante nenhuma doutrina, mas
lhe é dada como presente de Deus. Quem
não experimentou por si mesmo a conversão achará sempre algo estranho em todo o
pensamento que se funda sobre ela. O que significa essa conversão? Ela não
é o despertar uma vez provocado por Cícero, nem a transfiguração feliz do
pensamento na espiritualidade atuada por Plotino, mas um acontecimento único, por sua essência diferente no seu
sentido e na sua eficácia: consciente de
ter sido tocado imediatamente pelo próprio Deus, o homem se muda até na
corporeidade do seu existir e nos objetivos que se propõe [...]. Junto com
o modo de pensar, mudou também o modo de viver [...]. Semelhante conversão não
é filosófica mudança de rota que é preciso renovar dia por dia [...], mas um instante biograficamente estável que
irrompe na vida, dando-lhe fundação nova [...]. “Neste movimento do
filosofar, do autônomo ao crente-cristão, parece que se trata do mesmo
filosofar. No entanto, tudo é permeado
como por uma linfa diferente, estranha [...]. Agora as antigas ideias filosóficas de per si já impotentes se tornavam
meio para pensar, num momento que jamais se acaba.
Por fim,
Jaspers enfatiza:
Aquilo que mudou acima
de qualquer coisa (após conversão) é a avaliação da filosofia. Para o jovem
Agostinho, o pensamento racional conservava expressamente um valor
preponderante. A dialética é a disciplina das disciplinas, ensina a aprender e
a ensinar. Ela demonstra e salienta aquilo que é, aquilo que eu quero; ela sabe
o saber. Ela somente quer e, mais ainda, pode tornar-nos sapientes. Agora é
avaliada negativamente. A luz interior
está mais acima [...]. Agostinho reconhece que sua anterior admiração pela
filosofia (como dialética) era totalmente exagerada. A bem-aventurança não se
encontra senão no anseio de Deus; mas essa bem-aventurança pertence somente à
vida futura, e o único caminho para
chegar a ela é Cristo. O valor da filosofia (como mera dialética) desse
modo desaparece. O pensamento bíblico-teológico subsiste como a única coisa
essencial.
Seria essa uma forma de
fideísmo? Não. Agostinho está muito longe do irracionalismo. A fé não substitui
a inteligência e não a elimina; pelo contrário, como já acenamos acima, a fé
estimula e promove a inteligência. A fé é um cogitare cum assensione, um modo de pensar assentido; por isso, sem
pensamento não haveria fé. E, analogamente, por seu lado, a inteligência não
elimina a fé, mas a reforça e, de certo modo, a esclarece. Em suma: fé e razão
são complementares. O credo quia absurdum
é atitude espiritual totalmente estranha a Agostinho.
Nasce, desce modo, a
posição que mais tarde será resumida nas fórmulas: credo ut intelligam (creio para compreender) e intelligo ut credam (compreendo para crer); fórmulas, por outro
lado, que o próprio Agostinho antecipa na substância, e, em parte, também na
forma. Sua origem se encontra em Isaías 7,9 (na versão grega dos Setenta), onde
se lê: “Se não tiverdes fé, não podereis entender”, que em Agostinho,
corresponde à exata afirmação: intellectus
merces est fidei, a inteligência é “recompensa da fé”. Eis duas passagens a
esse respeito muito significativas. Lemos na Verdadeira religião:
Com a harmonia da
criação [...] concorda também a medicina da alma, fornecida a nós por inefável
bondade da divina Providência. [...]. Essa medicina age em ordem a dois princípios:
a autoridade e a razão. A autoridade
exige a fé, e encaminha o homem à razão. A razão induz ao entendimento
consciente. Por outro lado, sequer a autoridade pode dizer-se desabastecida de
um fundamento racional, desde que se considere a quem se presta fé; e os
motivos de obséquio à autoridade são mais que nunca evidentes quando ela
sanciona uma verdade incontestável também para a razão.
E na Trindade
(referindo-se à passagem de Isaías supracitada) se lê:
A fé procura, a
inteligência encontra; por isso o Profeta diz: Se não credes, não compreendereis. E, por outro lado, a
inteligência procura ainda Aquele que encontrou; porque vela sobre os filhos do homem, como se canta no Salmo
inspirado, para ver se há quem possui
inteligência, quem busca a Deus. Portanto, por esse motivo o homem deve ser
inteligente, para buscar a Deus.
Essa é a posição que
Agostinho assumira desde a sua primeira obra em Cassicíaco, Contra os Acadêmicos, que continua sendo
a característica mais autêntica do filosofar:
Todos sabem que nós somos estimulados ao conhecimento pelo duplo
peso da autoridade e da razão. Eu considero, portanto, como definitivamente
certo não ter de afastar-me da autoridade de Cristo, pois não encontro outra
mais válida. Além disso, a respeito daquilo que se deve alcançar com o
pensamento filosófico, confio que encontrarei, entrementes, nos platônicos,
temas que não causam repugnância à palavra sagrada. Essa é, com efeito, a minha
atual disposição de desejar apreender sem demora as razões do verdadeiro não só com a fé, mas também com a
inteligência.
E muitos outros textos
de gênero semelhante poderiam ser aduzidos.
Note-se que Platão já
compreendera que a plenitude da inteligência podia realizar-se, naquilo que
concerne às verdades peremptórias, só mediante divina revelação, e escrevera:
Tratando-se dessas
verdades, não é possível senão fazer uma destas coisas: ou apreender de outras
qual é a verdade, ou descobri-la por si mesmo, ou, se isto é impossível,
aceitar, entre os raciocínios humanos , o melhor e mais fácil de se confutar, e
sobre ele, como uma barcaça, enfrentar o risco da travessia do mar da vida, a
não ser que se possa fazer a viagem de forma mais segura e com risco menor numa
navio mais sólido, isto é, fiando-se numa revelação divina.
Esse navio, para
Agostinho, já existe: é o lignum crucis,
é o Cristo crucificado, e é nesse sentido que podemos falar de terceira
navegação. Cristo, diz Agostinho, “pretendeu que passássemos através dele”, e
também: “Ninguém pode atravessar o mar do século se não é carregado pela cruz
de Cristo”. Este é precisamente o “filosofar na fé, ou seja, a “filosofia
cristã”: mensagem que mudou por mais de um milênio o pensamento ocidental. (ANTISERI Dario e REALE
Giovanni, 2017, p.450-452).
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